domingo, 22 de abril de 2012

Viáticum Absconditus




Esconderijos do Caminho, Cavernas da Verdade, Poços da Vida!



         Certamente, os mais indicados para falarem sobre tão inexprimível viáticum (caminhada) são aqueles que em profundo despojamento existencial enveredaram pelos desertos rumo à inefável bem-aventurança, à beatitude indizível – a aquisição do Espírito Santo.[1] Contudo, ainda que em um auto-refúgio e em circunstâncias protetoras dos causticantes raios solares de tais desertos, aventuro e arrisco estas poucas linhas com o fim de registrar uma "impressão de fora" a respeito do Viáticum Absconditus místico-espiritual conhecido por monasticismo.

Breve Enfoque Histórico

         Sua gestação deu-se a partir do momento em que o remédio da revelação divina (duramente conservada pelo judaísmo) fecunda o óvulo da reflexão humana (racionalmente produzido pelo helenismo). No encontro providencial do esforço do homem com a revelação de Deus, portanto, nasce na palestina dos dias intertestamentários, o grande sustentáculo da mística e da espiritualidade – o movimento monástico. À luz da razão e da Palavra divina, o judaísmo palestinense dá à luz o Viaticum Absconditus rumo à las tinieblas divinas.[2] Nesse contexto, os essênios são historicamente a expressão primeva do monasticismo e João Batista escrituristicamente a nítida indicação da relação que teve este movimento com o movimento de Jesus desde os seus primórdios na palestina de então.
         Ao carismatismo itinerante[3] de Jesus e dos apóstolos sucedeu uma outra forma de carismatismo no seio da Igreja oficial – o carismatismo monacal. Aquele serviu à disseminação do Cristianismo sob o Império Romano, este serviu para a conservação e auto-preservação deste em meio à cooptação da Grande Igreja[4] com os ditames imperiais.
         Tal foi a genuinidade do carismatismo monacal ou monástico (evocação e continuação do monasticismo profético do Batista e do monasticismo comunitário dos essênios) que o laos cristão, o sensus communis fidelium[5]  não somente o aprovou, mas a ele recorria como a uma fonte de orientação ante as explicações sistematizadas da hierarquia clerical sempre mais rígida e secularizada. Mais adiante a própria hierarquia cede à insurreição pacífica, mas avassaladora dos monges. A mística e a espiritualidade já estavam identificadas com o pensamento e o estilo de vida monástico por mais que a Igreja oficial tentasse resguardá-las como relacionada ao ofício eclesiástico e a uma liturgia estonteante.
         Finalmente, a Igreja no Oriente opera a fusão entre o episcopado e o monasticismo para sua felicidade. Contudo, no Ocidente, onde o papa não impôs tal disciplina, o clero ficou sujeito ao descrédito popular e ao despreparo espiritual, não obstante, o maior preparo intelectual e o estereótipo da jurisdição papal propagado pelos antecessores e sucessores do ultra-montanismo por toda Idade Média. Em suma, toda caminhada do Oriente cristão foi inequivocamente mais aproximada do monasticismo, não acontecendo o mesmo com o a Igreja no Ocidente.
         Este enfoque histórico, em nome da brevidade e intencionalmente, somente abordou o monasticismo até o seu período medieval. Tencionamos, mas adiante, dar rápidas pinceladas nos períodos mais recentes de sua história. Agora, no entanto, também com brevidade, enfoquemos a postura protestante em face do nosso assunto.

Postura Protestante

         Sem dúvida, a tentativa de correção dos males insuportáveis do monasticismo ocidental fez com que o protestantismo assumisse uma aversão histórico-doutrinal frente ao Viaticum Absconditus.
         Sob os auspícios do racionalismo nascente e do humanismo crescente, o protestantismo jamais poderia conceber qualquer espiritualidade estranha à luz da razão. Isto conduziu o protestantismo à famosa ortodoxia luterana[6] e ao moralismo puritano-calvinista dos séculos posteriores à reforma.[7] Em ambos os casos toda "experiência do sagrado" foi reduzida e minimizada à doutrina e à ética. A antipatia por qualquer mística sacramental, tipicamente protestante, também contribuiu para o desenvolvimento de uma espiritualidade racionalista e moralista.
         Diante de tal postura, e frente à aversão ou mesmo redução do Viaticum Absconditus, surge o pietismo alemão, o reavivalismo inglês, o pentecostalismo norte-americano.[8] Todos tateando em busca da dimensão monástica perdida, a procura da experiência com o sagrado. Anelos de resgate em relação à configuração original do cristianismo – o despojamento existencial, o carismatismo monacal, o monasticismo, jóia perdida e substituída por reduções minimizantes, tais como: a piedade santificante, a santidade instantânea e a instantaneidade da "aquisição do Espírito Santo". Todas estas reduções, porém, são olhadas com desprezo pelos herdeiros legítimos da Reforma por causa dos maus odores doutrinários, ironicamente falando, da "justificação pelas obras" e da "questão do mérito".

Espiritualidade Oni-abrangente

Por mais justificadas, lógicas e racionais que sejam, as vias de espiritualidade propostas pelo Ocidente Cristão são geralmente reducionistas. Sob a tutela da razão, da reflexão teológica jurídico-hierarquicamente manipulável, as vias de espiritualidade ocidentais, por vezes, terminaram por reduzir a visão, minimizar a caminhada mística dos leigos e dos clérigos.
O protestantismo racionalista e moralista, assim como o catolicismo jurídico e secularizado, sempre estigmatizou o patrimônio comum da espiritualidade oriental – a mística. Esta, no âmbito cristão, foi resguardada pelo movimento monástico, sendo no Oriente Cristão paradoxalmente acentuada, juntamente com a hierarquia e a liturgia. A diferença básica é que, em nível de Oriente ortodoxo, a hierarquia e a liturgia não são os substitutos, mas sim os salvo-condutos mediante os quais a espiritualidade (leiga ou clerical) é não apenas conduzida, mas também produzida.
         A vida litúrgica da Igreja no Oriente é um contínuo chamado à espiritualidade. Esta, por sua vez, encontra-se não em uma proposta reducionista, em uma via minimizadora, mas em um convite litúrgico (calcado no exemplo dos bispos) a uma espiritualidade integral, a um apelo radical à exigência oni-abrangente do Reino – entrega do que se tem e do que se é – veiculada plenamente pela via monástica.

Práxis de Serviço

         Por um lado, o pragmatismo e utilitarismo norte-americanos; por outro, a práxis comunista e das teologias políticas européias e latino-americanas, perguntam qual a conseqüência prática, o lucro, a utilidade, a relevância histórica, e a própria crítica sócio-política da via monástica, visto ser ela uma caminhada escondida, um viaticum absconditus.
         A esta altura chegamos não a uma restrospectiva, mas a uma perspectiva do viaticum absconditus. Como o próprio ideal evangélico, o monasticismo privilegia a perspectiva de serviço aos irmãos, a práxis de serviço em relação ao mundo. Não haveria qualquer sentido na via monástica se de tal práxis se afastasse. Por isso, percebe-se como parte destinada à sustentação espiritual dos irmãos. Neste aspecto, a vida orante é encarada como serviço, superando na prática a distinção convencional entre igreja ativa e igreja passiva. Os que oram, longe de qualquer passividade, reconhecem a oração como ação ou atividade espiritual como é conhecida nos círculos monásticos do Oriente. Quanto ao serviço ao mundo, desde os primórdios o monasticismo traz no seu bojo o tom profético de protesto em relação ao sistema, à presente era, ao presente século mau, sendo isto expresso através da renúncia radical ao mesmo. A esta atitude passiva em direção às categorias terrenas contrapõe-se uma atitude ativa que o serviço profético prestado pelo monasticismo revela – a atividade intra-mundana na instauração dos conceitos e práticas do Reino de Deus. Neste sentido, o monge antecipa diante dos olhos do mundo uma nova era de justiça e paz. Através da renúncia aos bens materiais e da fraternidade em relação aos bens comunais, a justiça do Reino vigora em sua vida aos olhos de um sistema de injustiças. Através dos carismas extra-ordinários do Espírito Santo antecipa a paz do Reino no discernimento com que julga as causas humanas, pacificando-as, e nos sinais e prodígios que sinalizam o fim da desordem, da desarmonia cósmica, à semelhança dos milagres evangélicos e apostólicos. Enfim, na oração, no protesto, nos carismas, o monasticismo continua o profetismo veterotestamentário. Além disso, vidas como a de São Serafim de Sarov, São Francismo de Assis e de tantos outros, não excluíram o contato indiscriminado com o mundo a fim de transfigurá-lo.
         Dessa forma, concluímos que a práxis do serviço é uma constante, por mais contraditório que pareça, na vida daqueles que se entregam à caminhada escondida. Escondidos dos homens e achados por Deus são, na verdade, escondidos por Deus dos achados dos homens. Possuem caminhos escondidos, mas são esconderijos caminhantes. Ícones terrenos da Virgem-esconderijo do Altíssimo que nela habitou por nove meses... À semelhança de tamanha candura e aparente passividade, os que se entreguam a tão gloriosa via são uma espécie de Fiat sotérico por serem, em última análise, Esconderijos do Caminho, Cavernas da Verdade, Poços da Vida...

Jairo Carlos S. Jr.

                                                                                                                          

 

                                                                                                                           Paróquia de São João Crisóstomo

Caruaru – PE
Igreja Ortodoxa Sérvia
Diocese da América do Sul e Central
Reelaboração na quaresma de 2006




[1] Esta expressão é própria da espiritualidade ortodoxa conhecida como Hesicasmo e, mais especificamente, de São Serafim de Sarov.
[2] Vladimir Lossky, Teologia Mística de la Iglesia  de Oriente (Barcelona: Editorial Herder, 1982), pp. 19-33.
[3] Gerd Theissen, Sociologia do Movimento de Jesus (São Leopoldo: SINODAL, 1987), pp. 36-55.
[4] Raymond Brown, A Comunidade do Discípulo Amado (São Paulo: Paulinas, 1984), pp. 161-9.
[5] Expressão latina e técnica da área de eclesiologia e de exegese que siginifica: senso comum dos fiéis.
[6] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (São Paulo: ASTE, 1986), p. 35-9.
[7] Antônio Gouvêa Mendonça, O Celeste Porvir – a  Inserção do Protestantismo no Brasil (São Paulo: Paulinas, 1984), pp. 35-9.
[8] Frederick Dale Bruner, Teologia do Espírto Santo (São Paulo: Vida Nova, 1986), pp. 28-44, demonstra como o pentecostalismo pode ser perfeitamente entendido como uma "americanização do protestantismo".

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