segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Homilia de Natal

Metanóia

- Dom e Tarefa do Verdadeiro Natal -

 

 

 

Temos aprendido com a tradição judaica a noção de arrependimento e com a tradição latina a prática da penitência. O arrependimento seria o aspecto negativo exigido para nossa reconciliação com Deus, dizem os judeus. O cristianimo no ocidente, ao contrário, acentua o aspecto positivo nesta reconciliação, propondo atos que traduzam o fruto de nosso arrependimento, ou seja, a penitência.

 

No oriente cristão, contudo, a reconciliação com Deus tem sido experimentada de forma um tanto distanciada da ênfase judaico-ocidental na realidade do pecado, ainda que considere positivamente o caráter do arrependimento e um tanto negativamente as penas impostas pela penitência. Sua proposta é essencialmente litúrgica e ascética e tira do foco o conteúdo moral entrevisto por judeus e latinos.

 

Metanóia, eis a palavra que define, para o cristão ortodoxo, a proposta de arrependimento e a forma de penitência. Esta palavra grega é composta pela preposição 'meta' que é traduzida em nossa língua pelo prefixo 'trans' (idéia de mudança de estado) e o substantivo 'nóia', derivado de 'nous', que significa 'mente' ou 'espírito'.

 

Isso nos conduz ao caminho da mudança, não simplesmente de comportamento. Isso nos introduz em uma via de transformação que implica na renúncia do nosso tempo e atenção para um envolvimento cada vez mais intenso com a liturgia da Igreja.

 

A metanóia é a mudança da vontade, a libertação das paixões e a aquisição do amor, cujas fontes estão na graça sacramental dispensada, primordialmente, na liturgia e mantida constantemente na oração, nos jejuns, nas esmolas, das quais a metanóia é a porta.

 

Sim! Para o oriente cristão, a metanóia é a porta da graça, não um momento transitório, mas uma etapa a se encarar. E mais que uma etapa, a metanóia é um estado que dura sempre, uma atitude permanente daqueles que aspiram a união com Deus na Santa Eucaristia.

 

Metanóia é mudança de mente, a transformação do espírito humano, é ainda, como nos lembra um teólogo ortodoxo:

 

...uma segunda regeneração concedida por Deus depois do batismo ...uma saída constante para fora de nós mesmos ...uma virtude que efetua a mudança de nossa natureza. Um estado de espírito contrário ao aburguesamento espiritual de um fariseu, de um justo que se julga em estado de graça por não conhecer a si mesmo.

 

Longe dos fariseus de plantão naqueles dias, São José, de acordo com o Evangelho deste Domingo, é o exemplo por excelência de Metanóia no Natal do Senhor. Alheio à Divina Revelação e, de algum modo, hostil à Mãe de Deus por não compreendê-la plenamente, ele é acudido pela metanóia como dom divino que lhe foi ofertado, inclusive sobrenaturalmente.

 

O fato é, porém, que assumiu integralmente naquelas circunstâncias desfavoráveis uma mudança de vida pela renovação de sua mente a fim de experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus, à medida que começara a aprender a renunciar a sua própria vontade, tornando-se assim plenamente unido ao Menino Deus e à Sua mãe. Mãe de Deus e agora igualmente Mãe de São José, dada a mudança de perspectiva que a verdadeira metanóia natalina traz a todo o que crê no mistério do Natal.

 

Assim, devemos sempre lembrar que o Evangelho não é simplesmente voltado à árvore genealógica do Messias ou de qualquer um de nós. Não pretere os ascendentes aparentemente desonrosos de Jesus, nem os nossos. Não privilegia a descendência real do Cristo, nem qualquer de nossas famílias tradicionais.

 

Ao contrário, o Evangelho destina-se a descobrir entre os homens aquele que se abre e dispõe à metanóia natalina de que nos lembra o Acatisto à Theotokos, quando reza que

 

...levando dentro de si mesmo uma tempestade de dúvidas, o bondoso José que estava atribulado. Pois sabendo que não tinhas outro esposo, ele abrigava suspeitas, ó Puríssima, mas, ao saber pelo anjo que tua concepção era sem semente, exclamou: Aleluia!

...Alegra-te, Mãe do Cordeiro e do Pastor!.

Descobrir a metanóia do Natal, aprender a via da renúncia a cada prostração litúrgica ao longo da semana e a cada sinal da cruz durante a Liturgia Eucarística, eis a dissipação de nossa tempestade de dúvidas diante da bendita mangedoura! Eis a libertação genuína de toda tribulação ilusoriamente definitiva.

 

Porém, isso só é possível se nos mantivermos íntegros diante da Mãe de Deus na convicção de sua inteira fidelidade e plena santidade, como reconhecia nela São José, mesmo em meio à desconfortável situação. Ela é a mãe do Cordeiro de Deus e do Pastor de Israel, reza a Igreja, desde a humilde e efusiva experiência daquele que encontrou metanóia a partir de um sonho.  

 

Ela é a mãe do Cordeiro de Deus. E como mãe do Cordeiro gera todo o sacrifício, tornando-o possível ao emprestar sua própria carne e seu próprio sangue ao próprio Deus que se encarnara para com a Sua carne e o Seu sangue tirar definitivamente o pecado do mundo.

 

Assim, sendo tamanho Sacrifício, a adoração ascética de toda a Igreja em todos os séculos, não deveríamos reavaliar nossas posturas diante da Mãe de Deus que de tal forma se ofereceu por nós ladeada por São José? Não deveríamos mudar a nossa mente e transformar o nosso espírito dia a dia, assumindo o drama de acompanhar o Menino Deus e Sua Venerável Mãe "em cada instante de nossa vida" tão distante, tantas vezes, do verdadeiro sentido da Divina Concepção?

 

Sim! Ela é a mãe do Pastor de Israel. E como mãe do Pastor torna possível o Seu cuidado, o qual não se limita ao nosso batismo e à nossa entrada na Igreja. Como São João Clímaco já nos alertava a esse respeito, a metanóia é não somente uma renovação do nosso batismo, mas também uma fonte de lágrimas posterior ao batismo ainda maior do que o próprio batismo.

 

O significa preciso de tão profunda idéia é interpretado com indizível perícia por Vladimir Lossky ao explanar que:

 

...este juízo pode parecer contraditório e inclusive escandaloso, se for esquecido que a matanóia é fruto da graça batismal e se trata desta mesma graça, porém agora adquirida por alguém que dela toma posse, fazendo isso na experiência do 'dom de lágrimas', sinal inequívoco de que o coração tem sido consumido pela amor divino.

 

De fato, para São João Clímaco, "não nos acusarão de não havermos feito milagres, de não termos sido teólogos, de não havermos tido visões, mas teremos de seguramente dar resposta a Deus por não havermos chorado a causa de nossos pecados".

 

Por isso, devemos concluir que:

 

Este dom de lágrimas, consumação da metanóia, são por sua vez o começo de um gozo infinito...As lágrimas purificam a natureza, pois a metanóia não é tão somente nosso esforço, mas também o dom luminoso do Espírito Santo que penetra e transforma nosso coração.

 

Dessa forma, tanto o Natal do Senhor como a Metanóia na Igreja se nos oferecem como dom e tarefa. Preceito litúrgico e tarefa existencial da Virgem, de São José, de cada um de nós, mas igualmente dom de Cristo na mangedoura e no calvário que deveria mesmo nos arrancar lágrimas, não de mera comoção pelo glamour das festividades, mas lágrimas pela consumação de Sua obra em nós, dentro de nós, e a partir de nós, a tantos quantos ainda não fazem metanóia ante o Mistério do Natal, o dom inefável ao qual fomos eternamente atarefados.

 

 

 

Pe. Jário Carlos S. Jr.

Homilia de Natal

2013

Paróquia de São João Crisóstomo

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Belo Jardim

Igreja Ortodoxa Sérvia

Metropolita Dom Amphilohije Radovitch

 

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